O primeiro milhão

Por Manoel Fernandes | 

Um milhão é coisa séria. Pelo menos no Google, mais de milhão de resultados: entrevistas, artigos, depoimentos de que quem já ganhou ou de quem quer ganhar; livros, best-sellers, e-books, pdfs; 10 dicas para você ganhar. Filmes, minisséries, curtas-metragens, tutoriais ilustrados. Páginas “primeiro milhão” em redes sociais. Nirvana do mundo atual, tem primeiro milhão para casais, para quem ainda não tem 18 anos ou mesmo para jovens nerds. Como herdar o primeiro milhão, ou como administrar o herdado. Primeiro milhão com venda de carros, de gado, de casas, de pixels; com e-commerce, com blogs, com guias. Mas tem também mandigas, rezas e tudo mais que você precisar, com fé ou não, para alcançá-lo. Sem esquecer cursos, seminários, workshops, consultoria exclusiva, coaching. Perseguir o primeiro milhão é a coqueluche da alma monetizada.

Na história da humanidade, esta busca moveu e move continentes e pessoas. Guerras e traições. O mais alto lugar aos deuses do olimpo do mercado. A confissão na roda de empreendedores mexe com as entranhas dos que não estão despertos. “O meu está ganho e guardado!” A frase é jogada diante dos ouvidos estupefatos. Alguns por ainda não terem ganho, outros pelo sentimento sincero da não compreensão porque isto tornou-se tão importante.

No mundo da inovação, o primeiro milhão tem valor relativo. Reais sonhadores não são movidos pelo ouro, mas pela realização. Se vêm o primeiro ou os primeiros, o próximo desafio é o que movimenta o ideal. Nessas searas, abrir um negócio pensando somente no que trará de dividendos é um atalho certo para a frustração. Uma boa gestão muitas vezes não significa lucros estratosféricos, mas um negócio saudável, que traga uma solução que seja útil para pessoas; centenas, milhares ou milhões de pessoas. Sim, isto também é realização.

Nas hordas de seres de mercado, o maniqueísmo do êxito e do fracasso parece determinar quem é “bacana” ou quem não é. Em Israel, por exemplo, país referência quando se trata de empreendedorismo em empresas de tecnologia, quem fracassa ao não ganhar este primeiro milhão tem um tratamento diferenciado. Uri Levine, um dos criadores do Wase, explica:

“ O que acontece se você abrir uma empresa no Brasil e quebrar? Você fracassou, certo? Há duas consequências disso. A primeira é: qual sua capacidade para de fato começar um novo negócio no Brasil? Isso tem a ver com questões de regulação. E a outra é quão aceitável isso seria na sociedade.

Essas duas coisas são muito menos assustadoras em Israel do que são no Brasil. Em Israel você provavelmente teria muito mais reconhecimento por ter tentado do que pelo fato de ter falhado. Se você falha, não fica com uma culpa. Assim reduzimos a barreira para start-ups começarem.”1

Culpa, falha, derrota. A alegria e o e prazer de construir e ser útil para a sociedade é transformado em sofrimento e problemas existenciais. A exigência pela busca do primeiro milhão paralisa empreendedores. A alma de todo negócio deve ser a realização de grupos afins que perseguem e concretizam uma ideia. Planos de negócios é um documento técnico para dar sustentação ao negócio, mas as realizações transcendem a isto. Eu e minha equipe somos mais que um plano.

Com a palavra, Ken O’Donnell, em seu livro “A Alma do Negócio”:

Se a vida não estiver funcionando bem no âmbito do ser, a outra parte também não poderá dar satisfação. Pode ser que haja sucesso em termos de números, mas o novo conceito de sucesso inclui a experiência de contentamento. É sentir-se bem com você e com os outros; e as pessoas sentirem-se bem com você e você se sentir bem com aquilo que está fazendo.”

Contentamento! Eureca, me parece que isto está além do primeiro milhão.

Cris, minha companheira, teve um sonho. Lá estou eu em um grande púlpito, em discurso convincente falando do milhão de “nãos” que eu recebi ao longo da vida e que me fizeram avançar e insistir mais; um milhão de caminhos que surgiram e que eu mantive a coerência naqueles que me pareciam mais viáveis no desenvolvimento do meu ser integral; um milhão de quilômetros que sempre me separaram de um mundo melhor e nem por isto me desanimou em buscá-lo; um milhão de oportunidades perdidas que me proporcionaram valorizar as pequenas coisas conquistadas.

Uma amiga querida vive a explorar em caminhadas junto à fauna silvestre, em trilhas matas e florestas. O milhão dela é da cor da aventura e descoberta. Um amigo hacker, das antigas, vive imerso em sua arte e na filosofia para criar uma internet melhor. O milhão dele, o estado-da-arte do saber compartilhado. Minha filha vive entre a comunicação digital e o teatro, em uma vida agitada e repleta de amigos. O milhão dela é estar bem agora e sempre.

Meu milhão será a sabedoria do momento final: odores de todos os tipos e eu mais vivo do que nunca; meu olhar perdendo-se em paisagens indescritíveis; brisa fresca de início de noite a tranquilizar o ambiente em que noite e dia se confundem. Respiro profundamente e procuro definir as novas sensações. Desloco-me, reinvento-me, desejo o todo suavemente: o imperecível, o não-linear, o infinito. Minha alma serena, consciente de que ofereci o melhor de mim em mais um longo processo de aprendizagem.

Qual o seu primeiro milhão?

1- Entrevista citada http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/01/1725391-as-pessoas-nao-pensam-mais-por-onde-estao-indo-diz-criador-do-waze.shtml